#ArteviewNaPlateia – Review do musical A Cor Púrpura

Por Léo Braga

Muitos musicais da Broadway são baseados em filmes de grande sucesso em Hollywood, os quais frequentemente têm origem em livros que também fizeram sucesso em algum momento. ‘A Cor Púrpura‘ segue exatamente esse percurso: o livro de Alice Walker, vencedor do Pulitzer, foi magnificamente adaptado para o cinema por Steven Spielberg, recebendo 10 indicações ao Oscar. O estrondoso sucesso do filme levou, duas décadas depois, à adaptação para musical na Broadway, que também recebeu múltiplas indicações ao Tony.

A Cor Púrpura segue a triste trajetória de Celie, uma menina que, após ser abusada pelo pai e ter dois filhos antes mesmo dos 15 é obrigada a se casar com o cruel Mister, mas que nunca perder a força de viver e reencontrar seus filhos, que foram separados de si logo após o nascimento.

O musical chegou ao Brasil em 2019, estreando no Rio de Janeiro sob direção de Tadeu Aguiar e já passou por diversas cidades (algo que é menos comum do que gostaríamos). Após a primeira temporada em São Paulo, o musical recebeu 9 indicações ao prêmio Bibi Ferreira, tendo Letícia Soares recebendo o troféu de melhor atriz em musical daquele ano.

Após a pandemia, diversos atores integraram o elenco do espetáculo e depois da talentosa Amanda Vicente no papel de Celie, agora é a vez de Suzana Santana protagonizar o espetáculo. Lá fui eu conferir.

A primeira visão da montagem brasileira já é de impressionar. Assim que entramos no Teatro, damos de cara com o lindíssimo cenário de madeira ainda na penumbra, mas já imponente. Natália Lana costuma fazer cenários lindos, não é novidade, mas este é o que mais me impressiona pela beleza e, para além dessa beleza, ser tão funcional, nos permitindo que nada da encenação seja perdido por um possível “ponto cego”.

E assim que o terceiro sinal toca, outra parte técnica de cair o queixo que salta aos olhos é a iluminação desenhada por Rogério Wiltgen. A rotunda (aquele pano preto que normalmente fica no fundo do palco) foi substituída por algo que parece ser um tecido branco, que absorve muito bem as cores dos refletores, fazendo com que as luzes sejam mais sólidas do que estamos acostumados a ver.

Em cena, temos Celie e sua irmã Nettie (Lola Borges) brincando de adoleta na boca de cena para, em seguida, o elenco entrar em cena pela plateia, o que é sempre algo que encanta a plateia e nos aproxima da história, mesmo que a intenção não seja quebrar a quarta parede. O palco se transforma em um culto dominical com os homens à esquerda e as mulheres à direita, que não só ilustra a divisão sexista de algumas igrejas, mas explora lindamente as divisões de vozes numa inteligente direção musical desenhada por Tony Lucchesi para a primeira temporada e repensada por Talyson Rodrigues para 2024.

As desventuras de Celie não são fáceis de digerir e a tensão dela perto do próprio pai (Leandro Vieira) e do marido, Mister (Wladimir Pinheiro), é quase palpável e dolorosa em cada pessoa sentada na plateia, mas, para nosso alívio, temos alguns momentos de boas risadas com Harpo (Samuel Conze), Sophia (Erika Affonso) e, um pouco mais adiante, com Gralha (Maju Tatagiba).

Mais um momento delicioso é quando vemos, já com o primeiro ato avançado, a entrada de Shug Avery (Aline Serra), a filha rejeitada do Pastor (SIGOM),  que seguiu uma vida de sucesso no show business, mas que é considerada pecaminosa pelo pai e pelos fieis, mas desejada por cada marmanjo da cidade – e é o grande amor de Mister. Para além dos ataques de estrelismo, Shug é das personagens mais humanas da peça e Aline entrega tudo em uma interpretação mais madura do que todas as que eu tinha visto da atriz até então.

O primeiro ato termina com uma linda cena, com lindas atuações quando Celie descobre que sua irmã ainda está viva e sempre lhe escreveu cartas que nunca foram entregues. É uma cena emocionante, mas ainda não é nem a metade do que a segunda metade do espetáculo é capaz de proporcionar.

Quando voltamos do intervalo, Celie lê cartas de sua irmã e vemos Nellie na África (e fiquei impactado com a qualidade da interpretação – e dicção – da Lola, sem falar na qualidade do canto), com um belíssimo coro com vestimentas que fazem alusão às tradicionais africanas e que fazem parte de um figurino muito bem trabalhado assinado por Ney Madeira e Dani Vidal. Aqui ainda temos todo um movimento cênico forte e ao mesmo tempo delicado coreografado por Sueli Guerra.

Esse é o pontapé para que vejamos uma nova Celie em cena. Uma Celie que volta a crer que a felicidade ainda pode ser uma realidade na sua vida, mesmo ao descobrir que sua amiga Sophia foi presa em um episódio de racismo vil e torturada com a crueldade do homem branco – A Cor Púrpura também é uma poesia sobre a luta contra o racismo.

O segundo ato tem duas músicas que valem a pena ser apontadas com mais calma: “A Cor Púrpura”, que é lindamente cantada por Aline Serra. o Solo de Mister, que é o grande momento de Wladimir Pinheiro.

E antes de falar um pouco mais da protagonista, preciso citar o trio Doris, Darlene e Jatene (Hannah Lima, Claudia Noemi e Chelle) que funcionam tal qual um coro grego, contando um pouco do que a cidade pensa sobre Celie, cantando escandalosamente bem e entregando um carisma que preenche o palco e a plateia plenamente. E cabe mais um olhar especial à Vall Coutinho, solista da Igreja, que hipnotiza a todos com sua voz impecável.

Suzana Santana, a atriz que dá vida a Celie, não é uma novidade no elenco do musical, ela já está nele desde 2019, quando interpretou Jatene. Mas não podemos, de forma alguma, dizer que é mais uma atriz que interpreta a protagonista da história. Suzana tem uma força fora do comum e consegue nos entregar uma Celie de 14 anos tão bem quanto a Celie madura do final da história. Ela consegue levar o público a um estado de graça ao interpretar lindamente a música “Estou Aqui” – na sessão em que estive, assim que a música terminou, a plateia estava em pé ovacionando – merecidamente – essa artista espetacular.

É claro que, conforme esperamos, o final dessa jornada é feliz e isso acontece de uma forma extremamente emocionante (não vou soltar o spoiler). Mas aposto que não tinha uma pessoa no teatro com o rosto seco.

A Cor Púrpura trilha um caminho de mais de 40 anos (se contarmos a partir da publicação do livro) cativando as pessoas e passou por diferentes linguagens, cuja adaptação mais recente é o filme musical.

O que vemos em cena é uma dramaturgia de qualidade com belíssimas canções, que nos lembra que, apesar de todas as desventuras cotidianas, a busca pela felicidade nunca deve cessar. E mais uma vez, Tadeu Aguiar consegue nos deixar emocionados e nos encanta com uma história bem contada, bem dirigida e com um elenco lindamente afinado.

SERVIÇO

26 de setembro a 10 de outubro

Teatro Liberdade – Rua São Joaquim, 129

Ingressos: https://bileto.sympla.com.br/event/97449/